Comédia passageira Por Vanessa
Barbara "Visando minimizar o impacto causado pelo tráfego intermunicipal sobre a malha viária urbana, projetou e vem executando o Govêrno do Estado de São Paulo uma série de obras de vulto". Se o destino era o Nordeste, o fulano se dirigia a uma certa rua no Brás e por lá aguardava o ônibus. Para o Rio de Janeiro, o "ponto" localizava-se na Avenida Ipiranga, perto da agência da viação Cometa. O primeiro projeto para a construção de uma rodoviária em São Paulo veio apenas em 1953 e foi rejeitado devido ao local escolhido: o Palácio 9 de Julho. Em zona central não se pode construir estação, mas que idéia absurda - embora oito anos depois um empresário resolvesse transformar a praça Júlio Prestes em rodoviária, 150 mil pessoas por dia, uma única plataforma, congestionamentos nas redondezas, atrasos de até seis horas, alguns desembarcando no meio da rua e outros estendidos no térreo à espera de socorro médico. (Sem falar no mineiro que "comprou" um dos aparelhos de TV a cores da estação e ficou esperando o vendedor retornar com a escada para poder retirá-lo). "A rodoviária não é a casa da sogra", declarou Carlos Caldeira Filho, proprietário da estação rodoviária da Praça Júlio Prestes. (OESP, 31/1/81) Em 1967, cinco anos após a inauguração da Júlio Prestes, chegou-se à conclusão de que a cidade precisava de uma rodoviária única, localizada fora da área central, construída e administrada pelo poder público. Sendo assim, o governador Abreu Sodré firmou um pacto com o proprietário da rodoviária antiga: em dezoito meses ("mais ou menos") o novo terminal estadual entraria em funcionamento e a rodoviária de Carlos Caldeira Filho teria sua extinção decretada. Com ela, os problemas de trânsito no centro chegariam ao fim, assim como a degradação do bairro de Campos Elíseos, ao redor do terminal Júlio Prestes. Pois bem. Em 1969, a Secretaria de Transportes do Estado de São Paulo encomendou um estudo para a criação da rodoviária pública da cidade, que foi entregue um ano depois. Mas sabe como é: Festivais de Música, Cinema Novo, Copa de 70, o tempo passa e você nem percebe. Quando vai ver, já se foram dez anos e nada foi feito. Em 3 de janeiro de 1977, um relatório do DNER (Departamento Nacional de Estradas de Rodagem) afirmou que o Terminal da Júlio Prestes efetuava "distorções na forma de exploração, levando a um funcionamento que visa mais à arrecadação comercial do que à operação do sistema de transporte. Esta distorção coloca em primeiro plano conveniências comerciais, conflitando com o interesse prioritário, que deve ser o passageiro". (A Construção São Paulo, 10/5/82) O relatório foi lido, comentado e arquivado. Só se decidiu fazer algo a respeito quando os proprietários da Júlio Prestes anunciaram, meses depois, um plano de ampliação da estação. Aí já era demais. Em 30 de novembro de 1977, finalmente, firmou-se um convênio entre o DNER, a EBTU (Empresa Brasileira de Transportes Urbanos), a Transesp (Transporte do Estado de São Paulo) e a Companhia do Metrô para elaborar o Plano Integrado de Terminais Rodoviários de Passageiros (Piterp), cuja premissa básica era a construção de Rodoviárias descentralizadas na cidade. Justamente o contrário do projeto aprovado oito anos antes.
Em agosto de 1978, época em que foi concluído o Piterp, já existiam três terminais em São Paulo: o Jabaquara, inaugurado no ano anterior, responsável pelos embarques e desembarques do Litoral Paulista; o Glicério, que dava conta das viagens para o Norte e Nordeste; e o da praça Júlio Prestes, origem e destino das demais rotas. O Piterp previa a utilização apenas da rodoviária do Jabaquara (Glicério e Júlio Prestes seriam extintas) e determinava para a cidade outros quatro terminais (Tietê, Penha, Barra Funda e Pinheiros), todos conjugados às linhas do Metrô e próximos aos grandes eixos rodoviários. Em complemento a esse convênio, no dia 14 de março de 1978 a prefeitura promulgou a Lei n. 8.684, através da qual autorizava à Cia. do Metrô construir e operar, direta ou indiretamente, terminais de passageiros de qualquer espécie de transporte coletivo. "O prefeito Reynaldo de Barros declarou que a operação do Terminal Tietê será efetuada pela Companhia do Metrô, 'porque isso já está decidido desde que o terminal foi criado por decreto, eu quero que seja assim e está acabado'". (JT, 8/7/81) Em 19 de janeiro de 1979, o Metrô deu início à construção da Rodoviária Tietê, executada pela Constran S. A. Construções e Comércio. O término da obra estava previsto para outubro de 1981, embora o secretário dos Negócios Metropolitanos manifestasse o desejo de inaugurá-la em setembro, mês de aniversário do então governador Paulo Maluf. Caldeira Filho, desde o início, criticou o projeto do Terminal, tachando-o de "exercício de estudantes românticos" que não entendem nada de engenharia e "agem por maldade ou ignorância". Ressaltou, também, a incompetência do poder público em matéria de transportes.
Em julho de 1981, apesar das críticas, a construção estava quase pronta. Mas em pouco tempo alguns problemas surgiram: primeiro, a diminuição e posterior estagnação da taxa de crescimento populacional, utilizada para os dimensionamentos e taxas de ocupação dos terminais previstos, levaram a uma reformulação do plano de implantações do Piterp: a rodoviária de Pinheiros poderia ser descartada e à cidade restariam apenas quatro terminais. Em segundo lugar, pretendia-se condicionar o fechamento da Júlio Prestes à conclusão dos demais terminais, que aconteceria em alguns anos. Enquanto isso, a estação absorveria a demanda do terminal do Glicério (desativado imediatamente), até que pelo menos a rodoviária da Penha fosse construída. Ou seja: parte das linhas voltariam à Júlio Prestes por um período incerto, após a inauguração do Tietê. "Não voltam porque eu não vou deixar. Quando for pra sair, que saiam todos os ônibus". (Carlos Caldeira Filho, OESP, 31/1/81) Diante da recusa do proprietário da Júlio Prestes em aceitar as linhas do Glicério e operar com 25% das partidas atuais, foi-lhe oferecida outra opção: a estação seria alugada à Cia. do Metrô até que o terminal da Penha fosse concluído. Nada feito. Diante do fracasso dos acordos, resolveu-se que o Terminal do Tietê seria ampliado e adaptado para receber todo o movimento dos dois terminais, provisoriamente, até que o plano fosse cumprido e as partidas pudessem ser distribuídas pelas novas estações. Deu-se a reforma - antes mesmo da inauguração.
A solução proposta implicava na construção de um anexo para 14 baias de desembarque e pequenas alterações. Mesmo assim, o prefeito Reynaldo de Barros garantiu: "Nada vai ser mudado no projeto. O terminal foi muito bem planejado". (JT, 8/7/1981) Por conta das reformas, adiou-se a inauguração de outubro para dezembro de 1981. Isso ocorreu por volta de 8 de julho. Algumas semanas se passaram e, no dia 22 do mesmo mês, o presidente do Metrô, Cássio Florivaldo de Castro, julgou necessária uma reformulação na estrutura organizacional da Companhia, a fim de adaptá-la às novas atribuições que lhe foram impostas com a concentração das linhas no Terminal. Para isso, criou a diretoria de terminais rodoviários do Metrô e revelou uma pequena surpresa: o nome do diretor. "(...) Nesse sentido, foi escolhido para ocupar o cargo Carlos Caldeira Filho, convidado pelo secretário dos Negócios Metropolitanos, eng. Silvio Fernandes Lopes. O currículo do indicado o abona para ocupar esta alta função. Proveniente da iniciativa privada, empresário de sucesso no ramo, vem trazer ao Metrô de São Paulo sua contribuição e experiência profissional". (Diário Popular, 22/7/81)
...figura polimorfa, desportista, filantropo, homem público e político, empresário de sucesso em atividades jornalísticas, editoriais, de publicidade e de construção civil, Caldeira Filho sorriu no dia de sua posse e declarou já estar trabalhando no Terminal há 20 dias - ou seja, bem antes de sua nomeação oficial, ontem, e até mesmo da criação da nova Diretoria de Terminais Rodoviários do Metrô e de sua indicação para ocupá-la, dez dias atrás. Diante de olhares incrédulos, justificou o secretário Sílvio Fernandes Lopes, emocionado, que "com certeza não foi por amizade, nem pelas ligações sentimentais que nos unem desde a infância, nossas atividades à frente do Santos Futebol Clube, os trabalhos de filantropia desde o tempo de nossos pais que também foram amigos, certamente não foi por isso que o indiquei". "Nem mesmo os mais ferrenhos adversários podem negar os conhecimentos de Carlos Caldeira Filho, os seus 21 anos de experiência à frente do maior terminal rodoviário do País e das Américas. Foi o seu conhecimento que nos trouxe uma luz. A solução de aproveitamento encontrada para o terminal do Tietê, a modificação da filosofia exigiu a convocação de alguém com seus conhecimentos" (Sílvio Fernandes Lopes, JT, 1/8/81).
REFORMAS, NA NOVA RODOVIÁRIA. PARA QUE ELA FIQUE MAIS PARECIDA COM A ATUAL. Fazendo desenhos num papel, Caldeira Filho explicou as principais modificações que pretendia fazer na obra para retomar o projeto de centralização dos Terminais Rodoviários (abandonado com a criação do Piterp), "mesmo que essas alterações impliquem demolir uma parte do que já foi construído". Ou seja: apesar de já implementada, abandonou-se novamente a filosofia de descentralização. A golpes de martelo.
...são 83 as "ligeiras" modificações que o diretor extraordinário de terminais rodoviários da Companhia do Metrô, Carlos Caldeira Filho, pretende introduzir no Terminal, com um custo que "só Jesus Cristo vai descobrir", como ele mesmo declarou. ...alteração no esquema das plataformas, de 45 graus para contínuas (um ônibus atrás do outro) / supressão da escada principal de acesso à administração / remoção do edifício da Central de Controle Operacional / construção de lojas no lugar dos jardins suspensos / alargamento da pista de táxis / recolocação de gradil e modificação da posição do meio-fio / construção de nova escada de saída de emergência / execução de nova lanchonete / não utilização de todos os caixilhos e vidros previstos no projeto original / execução de nova escada de acesso à administração, agora chamada de "área de serviços"...
...Tietê já custou até agora quatro bilhões de cruzeiros [217 milhões e oitocentos mil reais], sendo que trezentos milhões [15 milhões e quinhentos mil reais] eram destinados ao material de acabamento que acaba de ser dispensado pelo novo diretor - e já tinha sido adquirido pelo Metrô. ...caixilhos com quatro metros de altura para separação dos ônibus / vidros das plataformas / luminárias / bebedouros (deverão ser retirados) / piso (a ser substituído pelas pastilhas usadas na Júlio Prestes) / "Scot" (sistema computadorizado de movimentação dos ônibus, a ser substituído pelo da Júlio Prestes: bandeirinhas nas mãos dos funcionários na saída de cada plataforma)... "Plataformas com os ônibus estacionados a 45 graus não funciona, porque os ônibus precisam sair de marcha a ré e podem atropelar as pessoas. Essas baias serão quebradas para que os ônibus estacionem em seqüência, um atrás do outro, como acontece em Julio Prestes, porque isso é o certo", declarou Caldeira Filho. (JT, 1/8/81) ...seria
um desperdício de dinheiro ou um conceito errado, uma vez que o
terminal foi projetado de modo a que os passageiros tivessem uma área
de embarque separada das plataformas por uma parede de vidro - que além
de proteger as pessoas das descargas poluentes dos ônibus teria
portas especiais, que só se abririam na hora do embarque, evitando
que os passageiros ficassem andando no meio dos veículos... ...embora o prefeito Reynaldo de Barros tenha, dias atrás, negado a possibilidade da construção de lojas comerciais em uma área de oito mil metros quadrados, onde deveria ser projetado um jardim suspenso (pois a Cia. do Metrô não disporia dos Cr$ 500 milhões necessários à execução da obra [27 milhões e duzentos mil reais]), ontem, após demorada reunião, a alteração foi anunciada.
"...um longo e sério trabalho, iniciado por volta de 1969, e Caldeira abandonou sua principal diretriz [descentralização dos terminais] sem nenhuma justificativa racional e apenas por interesses políticos imediatos", segundo disse o deputado Antonio Resk, que considera incoerente um local público administrado como empresa privada, pelo fato da última buscar o lucro e dispensar os critérios éticos e humanos no tratamento à população. "O objetivo é tão simplesmente a eficiência, mas na ótica microeconômica capitalista. Quando se associa isto à tendência atual da privatização, vê-se que essa briga tem conotações mais profundas". "...não há incompatibilidade real entre economia no gasto do dinheiro e conforto do usuário", é a resposta. "Os dois são passíveis de alcançar simultaneamente. O que não posso concordar é que uma rodoviária seja planejada para dar déficit. Não acredito que só por ser pública uma rodoviária tenha que dar prejuízo. Se as coisas fossem assim não haveria bons serviços e nem existiria a tão decantada sociedade de consumo". "...no cargo, ele poderá transformar todos terminais em novos mercados persas revestidos de pastilhas e recheados de verdadeiros atentados à economia popular: se na Júlio Prestes improvisada se cobra até 30 ou 50% a mais por qualquer copo d´água ou sanduíche, nas estações especialmente projetadas esses preços serão astronômicos".
"O Terminal Rodoviário Tietê, antes previsto para ser entregue em outubro próximo, dificilmente estará concluído no início do próximo ano. E mesmo que estiver, estará transformado em um terminal tão inoperável pelo Metrô que, se um dia o senhor Carlos Caldeira Filho deixar o cargo, a nova rodoviária fatalmente terá que passar para a iniciativa privada". (JT, 10/9/81). Ato dois ESTRUTURA DO TERMINAL DO TIETÊ PODE SER REFORÇADA ...antes mesmo de sua inauguração, pois não oferece resistência e segurança para receber milhares de passageiros de uma só vez. Isso, se o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) constatar a necessidade de se ampliar de 300 metros quilos por metro quadrado, que atualmente é o limite de resistência do piso, para 500 quilos, um "coeficiente de segurança" adequado para as características de uma estação rodoviária. "Na nova rodoviária jamais uma multidão poderia se reunir para ver um jogo de futebol e gritar em uníssono a palavra gol".(Caldeira Filho, JT, 25/9/81) "...então tive a cautela de examinar tudo cuidadosamente e descobri 'esse pequeno detalhe'. Agora, estão todos com a mão na cabeça. A Júlio Prestes - modesta, simples e inadequada - foi construída há 22 anos com uma estrutura para sobrecargas até 500 quilos".
Algumas baias foram quebradas e já tinham sido gastos 400 milhões de cruzeiros (20 milhões e 700 mil reais) com o novo projeto quando, em 13 de outubro de 1981, Caldeira Filho pediu demissão do cargo.
O empresário justificou a demissão dizendo estar cumprida sua missão com a entrega do documento "Reformulação do Projeto do Terminal Rodoviário Tietê - Memorial Descritivo das Alterações".
PROJETO ORIGINAL PODE PREVALECER NA NOVA RODOVIÁRIA DO TIETÊ Após a demissão de Caldeira e com o aumento dos protestos relativos às diretrizes do novo projeto - arquitetos, engenheiros, políticos e jornalistas -, paralisou-se o processo de modificações já em curso. As obras foram suspensas e retomadas apenas em janeiro, quando decidiu-se que o projeto de Caldeira Filho seria de fato abandonado, por ser incompatível com os interesses de uma empresa pública. "O terminal será entregue quando as obras acabarem" (Sílvio Fernandes Lopes, secretário dos Negócios Metropolitanos, A Construção São Paulo, 26/10/81)
Ato cinco METRÔ
CONSIDERA EXTEMPORÂNEOS DEBATES SOBRE O TERMINAL TIETÊ Quem será responsabilizado pelas reformas já executadas por Carlos Caldeira Filho, caso sejam consideradas improcedentes? À pergunta feita pelos sindicatos dos engenheiros e dos arquitetos, a Cia. do Metrô respondeu: tratam-se de assuntos técnicos internos, e, além do mais, não lhes foi pedida nenhuma opinião.
Ato seis "A maior obra de impermeabilização em manta de PVC da América do Sul" (A Construção São Paulo, 10/5/1982). ...foi erguido em terreno de 120 mil m2 e possui 47.800 m2 de área construída. Ao todo, escavaram-se 125 mil m3 de terra. Foram utilizados 170 mil m3 de terra para reaterro, 26 mil m3 de concreto, 4 mil toneladas de ferro e 1.245 homens. ...remoção do solo mole, substituído por material argiloso emprestado do km 10 da rodovia Fernão Dias. "Depois do trabalho de terraplenagem, fizemos uma escavação nas áreas dos edifícios e nos locais onde seria implantado o sistema viário pesado até uma profundidade de 2,5 m. Nessa cota encontramos uma areia branca firme. Em seguida providenciamos o reaterro com o material da Fernão Dias até atingir a cota de 722,5 m, nível este que isolaria definitivamente o terminal de qualquer problema relativo a inundações", declarou o eng. Luiz Carlos de Assis. As áreas destinadas a jardins ou sistema viário leve receberam material de reaterro do próprio local.
"Apesar das plantas ainda murchas, os jardins do Terminal Tietê foram totalmente plantados e todos esperam que até sábado tenham um melhor aspecto". (O Estado de S. Paulo, 6/5/1982) ...por enquanto, a ameaça do proprietário da rodoviária "João Caetano", Carlos Caldeira Filho, de desativá-la a uma hora da manhã do dia 7 de maio [dois dias antes do término da construção do Tietê], não repercutiu nos meios estaduais e municipais...
Intervalo. ------------------- Os valores foram atualizados segundo tabela da Fundação de Economia e Estatística Siegfried Emanuel Heuser (FEE), do governo do Estado do Rio Grande do Sul. |